sexta-feira, 3 de julho de 2015

Os blogues também emigram



Este blogue emigrou. Outro é o tempo, outra a medida ... um novo lugar para a utopia. 

Estão convidados a provar os sabores da terra numa fatia de pão e os desafios das palavras em opúsculos casuais ou intencionais. Imaginem-se sentados nas cadeiras de palha ou banquinhos de tripé, junto à lareira, por debaixo da grande chaminé, enquanto o azinho arde. Conversaremos. 







FC/03Junho2015

terça-feira, 10 de março de 2015

A nona










Cavaco Silva publicou um novo livro? Sobre política?! Mas o que poderá o senhor professor Silva ensinar-nos? Formado e deformado em Economia e Finanças, Cavaco olha para a política através do crivo da economia, reduzindo-a a fórmulas e teorias decapantes da liberdade e da pluralidade, os pilares da verdadeira política e do sentido público. Toda a sua actuação reduziu-se a colocar a política (o interesse de todos) ao serviço da economia (o interesse de alguns), e promover leis (o garante da equidade) ao serviço da necessidade (de terceiros). A antítese da liberdade, portanto. Esta lição eu não aceito.

Cavaco foi jovem e fez-se adulto ao mesmo tempo que a Europa se reconstruia do efeito da segunda grande guerra. Teve direito a uma profissão por si escolhida, a uma carreira, a casar e a ter filhos. Foi professor de Economia, ministro das finanças, primeiro-ministro e presidente da República. Encontrou o seu lugar no país, teve justo pagamento, foi respeitado. Certamente desde o primeiro dia. Um esforço recompensado. Tudo graças à herança dos velhos europeus que, cansados da miséria e da guerra, inventaram o Estado Social, aplicaram o Plano Marshall, criaram a ONU, a NATO, o FMI e o Banco Mundial, estruturas supranacionais que visavam a paz e a igualdade, os sustentáculos da democracia. Cavaco deveria saber reconhecer isso, nascido em Boliqueime, filho de um comerciante de frutos secos e de combustíveis e de uma mulher simplesmente Maria.

Hoje, vivemos o Portugal de Cavaco. A sua pegada tem o comprimento de 30 anos, demasiado comprida para poder desresponsabilizar-se do estado da arte. A assinatura está lá: C A V A C O. Neste Portugal de compromissos esquecidos, os velhos voltaram a trabalhar, os adultos vêem-se desempregados e os jovens não têm lugar. Se porventura encontram um princípio de vida, permanecem eternamente em estágio, negando-se-lhes todos os direitos. Brilhante estratégia da chamada economia de mercado, dirão uns quantos!!! Que adultos virão a ser estes jovens? Mão-de-obra barata, gritará Cavaco, orgulhoso da sua obra. What else? 

A escola pública está em perigo, os hospitais públicos em decadência, as empresas estruturais vendidas ao terceiro mundo... suga-se o povo, sangra-se o país... lêem-se epígrafes nazis em livros de medicina (!)... perspectivam-se as balas e, mais tarde, a vala comum. A Europa desmorona-se e Portugal toma a dianteira. O que poderá o Presidente Cavaco ensinar-nos na sua novena? Nada. Remeta-se ao silêncio, por favor, nós encontraremos o nosso caminho.   


FC/março2015

quarta-feira, 4 de março de 2015

Para aonde vão as moscas no Inverno?











O exemplo deve vir de cima, mas ninguém nos avisou que seria das moscas.

É certo que as moscas, bichos de notável adaptabilidade, dominam o nosso espaço aéreo mais privado, conspurcam o nosso alimento, desafiam a nossa luz, desfocam-nos o alvo, reproduzem-se sem licença, fazem-nos cócegas e no fim, apenas no fim, atrevem-se a amolecer à nossa frente. Descaradas! É mais que certo que tratam da sua vidinha não olhando ao resto (e que olhos elas têm!). Iguais entre si, iguaizinhas, voltam sempre que o tempo aquece. Ano após ano, sempre as mesmas moscas. Pelo menos, assim parece.

E se parece, é! (pois é de política que falamos).

As moscas carregam os bacilos da ignorância nas patas, no corpo, nas asas e na tromba mole. Proboscis ameaçador, se visto à lupa. Mas falta-nos essa lente. Bichinhos inocentes, pensamos. Enganamo-nos. As moscas não dormem. Enviam emails pela madrugada adentro, trabalham em surdina. Metem-se em aviões e fazem negócios da china. Urdem planos, conspiram, usurpam, vigiam-se, atraiçoam-se. Comprometem o futuro. Pudera! O seu ciclo de vida é estupidamente curto! A única preocupação centra-se no seu próprio umbigo. 

Moscas com umbigo, coisa bizarra. 

E a bizarria, sabemos nós, é própria dos humanos. A despropósito, como irá o Acordo Ortográfico, nesta ideia de juntar línguas, resolver significados diferentes para a mesma palavra? Bizarro: bem-apessoado, alto e belo, ou Bizarro: extravagante, excêntrico e esquisito? Neste caso, aplicam-se ambos. Mais uma prova de que os políticos-mosca estão em concordância com os tempos modernos. 

Os entendidos chamam-lhe co-evolução.

Também poderíamos chamar-lhe Revolução, Devolução, Evolução, Involução ou Denegação. Mas a questão não interessa às moscas, o seu cérebro está mais ocupado com a fuga rápida a qualquer ameaça.

Não há cidades para as moscas porque são incapazes de sair da ordem doméstica, falta-lhes mundo. Prisioneiras da necessidade e da urgência, mostram-se inábeis para a organização política. E o que parece, é! 

Imperfeita cidadania? Próprio das moscas. 

O povo que se cuide.


FC/04março2015

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

"O osso da borboleta", de Rui Cardoso Martins














O osso da borboleta, Rui Cardoso Martins, Tinta da China, 2014



A beleza é o tema principal do mais recente livro de Rui Cardoso Martins, O osso da borboleta. O autor parte da beleza como atributo feminino para chegar à beleza como atributo da humanidade, percorrendo um desconcertante caminho literário que não nos deixa indiferentes.

Num mundo pleno de fealdade, a beleza da personagem principal, a Purificação, tanto como a beleza da ex-companheira de Paulo, uma personagem que aparece de relance, está inevitavelmente associada a um jogo mais de azar do que de sorte, reflectido na imoral relação presa-predador (a moralidade não mora na natureza das coisas), quase sempre convidando a uma fornicação que morde porque tem dentes como os da lampreia. E quem não morde é mordido. São as leis da natureza (e a moralidade, já se disse, não mora na natureza das coisas). Vai-se a beleza, por inevitável envelhecimento ou por estranha fuga, e a vida inflecte sobre o passado. Para os náufragos de sofá e de sótão, “nada é tão imprevisível como o passado”. Um passado que se faz presente e lhes troca os tempos.

Num arrojamento ficcional despudorado, onde o passional é apenas interrompido (ou talvez fortalecido) por considerações sobre as coisas do mundo, por qualquer (des)propósito sempre reflectidas num ecossistema de sótão, Rui Cardoso Martins empurra-nos, sem nos dar fôlego, para uma outra dimensão da beleza, a beleza pública, revelada no final do último capítulo, nas últimas linhas do romance. Um simples gesto, talvez o mais simples de todos os gestos humanos, encerra o romance. O cumprimento da essência humana através desse simples gesto desarma-nos e faz-nos ganhar o mundo. Sairemos vivos desta fábula política porque, também aqui, a beleza foi servida fria.

Fernanda Cunha/janeiro2015

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Sono de Inverno, um filme político














Título Original: Kis uykusu
De: Nuri Bilge Ceylan
Com: Haluk Bilginer, Melisa Sözen, Demet Akbag
Drama, cor, 196 min, idioma turco, 2014
Estúdio: NBC Film, Bredok Filmproduction, Memento Films Production, Zeynofilm
Distinguido com a Palma de Ouro no 67.º Festival de Cannes



Sono de Inverno, o filme de Nuri Bilge Ceylan, ouve-se, vê-se, cheira-se, apalpa-se, saboreia-se. Os cinco sentidos estimulados. Três horas e quase meia, no compasso da sonata para piano de Schubert. O tempo real desaparece dos nossos sensores e mergulhamos inteiros nas vidas das personagens. Truque da fotografia, astúcia do som, inteligência dos diálogos. 
Em cena, os desencontros entre marido e mulher, irmão e irmã, senhorio e inquilino, na liberdade, na literacia, na fé e no amor. Anti-heróis das suas próprias vidas, encapsuladas no tempo e no isolamento, as personagens reflectem uma Turquia extrema, igual, afinal de contas, a tantos outros lugares. 
Tal como acontece nas sonatas, onde a ausência do canto nos liberta, também aqui a ausência de um pré-conceito do autor em relação aos temas que nos oferece, concede-nos a liberdade de juízo sobre a nossa própria condição humana. Sublime!

fc/janeiro2015


segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O julgamento que importa











A propósito de Sócrates (do grego) e de julgamentos (na antiga Grécia), há quem diga (Hannah Arendt) que já houve um tempo em que a liberdade coincidiu com a política. Era o tempo de Sócrates (o grego), ele próprio expressão dessa liberdade política. Pensar e agir, agir e pensar. Ambos com a mesma expressão, a mesma força, a mesma importância.
A principal consequência do julgamento de Sócrates (o grego) foi a separação do pensar e do agir, a separação entre a liberdade e a política. Os filósofos excluíram-se da esfera política, Fundada a filosofia política, com Platão, a liberdade passou a ser apenas teoria e a política uma prática mediada pela necessidade. E em política, a necessidade (economia) está sempre associada à violência, à imposição.
A política moderna é totalmente refém da necessidade (da economia), portanto, violenta. Quando a este fenómeno se associa a total ausência de sentido público, temos a actualidade. A triste actualidade. Sem sentidos, sem sentido, sem senso comum, sem povo. Uma actualidade bruta!
Compreender os meandros do julgamento de Sócrates (o grego) faz-nos compreender melhor o sentido do ser político e a fragilidade das instituições.
As instituições (tudo o que se institui) são o garante da liberdade (ou da sua ausência) e, portanto, da democracia (ou da ditadura). Foram criadas pelos homens para estabelecer aquilo que os une e, simultaneamente, aquilo que os separa. Refiro-me ao espaço público e político, naturalmente. Na actual democracia portuguesa está instituída a separação de poderes, incluindo o da comunicação social. Quando esta regra falha, não há julgamento que consiga ser justo (no sentido do melhor juízo). 
Talvez o julgamento de Sócrates (o português) nos venha demonstrar, pelo absurdo, o primado da forma sobre o conteúdo. E nos venha lembrar a importância dos princípios e dos valores colectivos, os antigos ensinamentos de Sócrates (o grego).

Nota para os mais distraídos: não estou a comparar os dois Sócrates nem estou a absolver o último. Estou apenas a falar da teoria que deveria estar na base de qualquer prática.

FC/24Nov2014

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Profundamente actual


 

“… there is apparently in the human mind itself one element capable of compelling the other and thus creating power ” - palavras de Arendt na voz de Godard (1997).


É possível descobrir um mundo comum entre Arendt e Jean-Luc Godard. Quero aproveitar esta oportunidade para relembrar o filme Notre Musique (Godard, 2004), a partir do qual é possível estabelecer um diálogo entre os juízos estéticos de Godard e a racionalidade de Arendt. O filme traz-nos uma pluralidade de personagens, de idiomas e de discursos, num cenário de reconstrução de uma ponte que pretende anular a ruptura entre o passado e o futuro, e confirma a actualidade do pensamento de Arendt. O cineasta apresenta-nos uma cidade em reconstrução, um cenário do pós-guerra a partir da qual se espreita o caos do mundo, convocando o conflito israelo-palestino e o racismo como fenómeno de exclusão, e contrapõe uma nova ordem por via do perdão, não tanto no plano moral mas sim, e principalmente, no plano político. Godard inclui no filme uma aula sobre a racionalidade instrumental contida na arte cinematográfica, através da qual nos revela a forma como ele próprio interpretou os fenómenos do mundo. Um filme que não procura a verdade absoluta, antes pelo contrário, induz o espectador a formular os seus próprios juízos a partir das verdades factuais, que vão surgindo no ecrã, e da habilidade persuasiva do cineasta, patente na globalidade do filme. Profundamente actual.


FC16Out2014